A VIVER ! . . . . .
Em hino á vida, ao sentir, sensitiva e inteligivelmente, como de resto esperamos por entre todo o sempre…
navegantes de um mar alto dos livros:
DIA 13 DE DEZEMBRO [21.00] – VISIONAMENTO
+ CONVERSAÇÃO FINAL (?!?)
§ Aqui ficam alguns excertos do livro que banhará a sessão de 20 de Dezembro, de Kertész, depois das imagens cinematográfico-vivêncialíssimas que o autor iluminou»»»
**Todos lhe deram passagem. A seguir, alguns também me abraçaram, e eu senti no rosto as marcas pegajosas dos seus lábios. Por fim, fez-se um silêncio súbito, todos tinham partido.
E eu despedi-me também do meu pai. Ou, antes, ele de mim. Nem sei. Nem me recordo exactamente da situação: o meu pai devia ter ido acompanhar as visitas à saída, pois, durante um bocado, fiquei sozinho à mesa com os restos do jantar e sobressaltei-me quando voltou. Estava sozinho. Queria despedir-se de mim.
**E só então compreendi que o amor-próprio é um sentimento que, manifestamente, nos acompanha até aos últimos instantes, porquanto, ainda eu me importunasse com esta incerteza, não dirigi sequer uma pergunta, nem oração, nem uma só palavra, não lancei o menor olhar para trás ou sobre os que puxavam. Foi então que a estrada chegou a uma curva elevada, e, de súbito, um vasto panorama se ofereceu aos meus olhos, em baixo. Estava ali a copada paisagem que tapetava todo um declive, as casas de pedra idênticas, as lindas barracas verdes, e outras, novas, decerto, formando um grupo separado, talvez mais severas e ainda não pintadas, a rede sinuosa, mas visivelmente ordenada, das vedações interiores de arame farpado que separavam as diferentes zonas, e, um pouco mais longe, afogada na bruma, a massa das árvores por agora sem folhas. Não sei o que esperavam lá em baixo, junto de um edifício, todos esses seres muçulmanos nus; havia dignitários que caminhavam para a frente e para trás; e, se via bem, mas sim, reconheci-os imediatamente pelos seus mochos e gestos rápidos: os barbeiros - assim, pois, esperavam, estava bom de ver, o duche e a admissão no campo. Mas, lá mais no interior, as longínquas ruas pavimentadas do campo estavam cheias de animação, apressavam-se, caminhavam frouxamente, passava-se o tempo - autóctones, doentes, dignitários, fiéis de armazém, felizes eleitos das equipas laborando no interior iam e vinham, cumpriam as suas tarefas diárias. Aqui e ali, fumos suspeitos misturavam-se aos vapores delicados, um estalido familiar subiu lentamente até mim, como o som dos sinos em sonhos, e o meu olhar esquadrinhador caiu sobre o cortejo dos que transportavam barras aos ombros, que abatiam sob o peso dos caldeirões fumegantes delas suspensos,e, devido ao seu cheiro acre, reconeci de longe, sem sombra de dúvida, a sopa de nabiça. Era pena, porque este espectáculo, este cheiro, fizeram nascer no meu peito - já, contudo, rígido - um sentimento cujas vagas crescentes conseguiram empurrar algumas gotas mais quentes dos meus olhos entretanto secos na humidade fria que banhava o rosto. E, mau grado a reflexão, a razão, o discernimento, o bom senso, eu não podia desconhecer a voz de uma espécie de desejo surdo, que se tinha insinuadao em mim, como envergonhada de ser tão insensata, e, todavia, cada vez mais obstinada; eu gostaria de viver um pouco mais neste belo campo de concentração.
(...a continuar)
In Sem Destino {Editorial Presença}, IMRE KERTÉSZ
»*» Imre Kertész (Budapeste, 9 de Novembro de 1929) é um escritor húngaro de religião judaica, razão que o leva a ser deportado para Auschwitz e Buchenwald, sendo libertado em 1945 - é um sobrevivente do Holocausto. No regresso a Budapeste começa a trabalhar como jornalista e, mais tarde, como tradutor. Recebeu inúmeros prémios ao longo da sua carreira literária, entre eles destacamos o mais importante de todos: o Prémio Nobel da Literatura de 2002 …"por escrita que confirma a frágil experiência do indivíduo face à arbitrariedade bárbara da história".
A obra mais bem conhecida de Kertész, Sem destino (Sorstalanság) descreve a experiência de um rapaz de quinze anos nos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, Buchenwald e Zeitz. Foi interpretado por alguns comentadores como quase-autobiográfico, mas o autor desmente uma forte ligação à sua própria biografia.
A partir de Sem destino foi rodado um filme na Hungria em 2005 com o mesmo título que irá ser exibido em vários países nos próximos meses.
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