quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A Ç . . .

«…Escuta isto: de onde não sai rumor. Repete isto: para todo o sempre. Nenhuma explicação te é lícita, nenhuma transacção é possível. A morte não espera nem atende. É estúpida. Primeiro é estúpida, depois é incompreensível. É tremenda porque contém em si mistificação ou beleza. Absurdo ou uma beleza com que não posso arcar. O nada ou uma coisa que a minha imaginação não atinge. Se é o mistério, e se desvenda de um golpe, apavora-me. Se é o nada, repugna-me. Apenas um minuto, e lá em cima as mesmas estrelas, e outros vagalhões de estrelas… Para ela tanto vale um segundo como um século, carrega um ser inútil ou um ser delicado com a mesma indiferença para o túmulo. Tens passado a vida a esperá-la. Que outra coisa fizeste na vida senão esperar a morte. Então para que nasci? Para ver isto e nunca mais ver isto? Para adivinhar um sonho maior e nunca mais sonhar? Para pressentir o mistério e não desvendar o mistério? Levo dias, levo noites a habituar-me a esta ideia e não posso. Tenho-te aqui a meu lado. Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro. Estou nas tuas mãos… Adeus sol que não te torno a ver. Árvores, adeus árvores que minha mãe dispôs; adeus pedra gasta pelos passos e que meus passos ajudaram a gastar; adeus ternura para a minha sede, fruto escondido – para sempre! Para todo o sempre Tenho-te horror e odeio-te. Interrompes os meus cálculos. És o maior dos absurdos. Ver para não ver, ouvir para não ouvir, viver para morrer!...»

Raul Brandão, Húmus

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

h ú M u §









A vida é nada - é esta cor, esta tinta, esta desgraça. É saudade e ternura. É tudo. É os meus mortos e os meus vivos. Levo pena de tudo, até da fealdade. Agarro-me a tudo, tudo me prende, o sonho que não existe, as horas inúteis, o possível e o impossível. A floresta não faz parte do meu ser, e eu tenho aquia a floresta, o som e o aroma da floresta, a vida da floresta: o céu naõ faz parte do meu ser, e eu sou o céu profundo, o céu trágico e o céu esplêndido. Dá-me a viad - dou-te tudo em troca... Agarro-me como um náufrago, agarro-me com uma saudade, que vem não só de mim, mas muito mais longe, da base mesmo da vida. Para sempre! Para todo o sempre! E, com um suspiro mais fundo, repete: -Suprimi a morte, vou ressuscitá-los!
A noite vem, a noite avança. Sinto os mortos. Ainda vivo, já estou em seu poder: faço parte da legião. Noite imensa sem gritos. Pior que sofrer é não sofrer - para sempre. É nunca mais sentir. E ter as órbitas vazias voltadas para o céu e nelas não se reflectir a luz das estrelas. Mais um passo e é o silêncio absoluto. Mais um passo e tapas-me para sempre a boca.

Não importa ser feliz - não me importa ser desgraçado. O que me importa é o que há depois, é o que está por baixo da terra e o que está por cima da terra.

Raúl Brandão, Húmus

sábado, 2 de fevereiro de 2008

De beber pelos olhos
e ser...

















Pode perder-se a alma bocejando
Y.K.Centeno

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

STABAT MATER & O QUE RESTA DO DIA

(fala/ voz de) Maria
O mundo não vai estar à espera do cristo
do meu filho
porque o mundo levantou-se mais cedo que todos
os poetas e profetas
junts
(...) e toda a gente que acorda acorda sempre
depois do mundo
e tem de se pôr na bicha
António Tarantino, Stabat Mater


Porque durante a guerra nos falavam sempre
de antes da guerra, de como todos eram todos
ingénuos, tenho agora o máximo cuidado,
ao deitar qualquer coisa fora, por exemplo,
uma caixa de papelão, peço a Deus
para que a caixa de não volte nunca
a assaltar-me em forma de remorso;
lembras-te ainda como nós, despreocupados,
deitávamos fora caixas sem pensar!
Se tivéssemos guardado pelo menos uma,
Se tivéssemosguardado pelo menos uma!
Judith Herzberg, O que resta do dia